O relato das várias descobertas de uma jornalista ao participar de uma oficina de sistematização promovida pela ASA. E o significado deste registro de histórias para a ação política da Articulação.
Por Verônica Pragana- Asacom
Na primeira semana de julho, estive numa missão desafiante e, por isso, instigante. Eu e mais umas 20 pessoas nos reunimos em Januária, no Norte de Minas Gerais, para refletir sobre a prática de contar, por escrito, as experiências de famílias agricultoras ou comunidades rurais. Para enraizar os conceitos discutidos na oficina, a reflexão era acompanhada de perto pelo exercício prático.
O grupo de participantes era formado mais por mulheres do que homens, com conhecimentos e experiência profissional em diversas áreas: comunicação, agronomia, pedagogia, etc. A maioria vinha do Semiárido, principalmente, o mineiro, mas nem todas. Enquadro-me nesta última categoria. Sou nascida e criada longe da realidade do Semiárido e do modo devida de uma família agricultora. Apesar das diferenças do grupo, algo muito forte nos unia: a dedicação à causa da convivência com o Semiárido, defendida pela Articulação no Semi-árido (ASA).
Como jornalista, a princípio, sentia-me confortável na oficina de sistematização. Afinal de contas, estaria exercitando uma prática que tem tudo a ver com minha profissão: perguntar, escutar, anotar e escrever. Mas, para minha surpresa, a proposta da oficina – de produzir um texto bastante fiel à narrativa e visão de mundo das pessoas envolvidas nas experiências – me colocou frente a frente com meu jeito automático de perceber a realidade e retratá-la com bastante miopia e distorções.
Tomei vários sustos ao ir percebendo algo que teoricamente já sabia: o quanto os (pré)conceitos formam uma cortina que nos impede de ver o outro. Percebi como as minhas vozes internas, julgadoras e conclusivas, me faziam surda à voz de quem experimenta a vida, as relações sociais, econômicas e culturais de forma estranha ao meu modo.
Muitas vezes li textos da jornalista Eliane Brum (e a escutei-a pessoalmente falar) sobre a necessidade de se esvaziar para entrevistar o outro e entrar na vida de pessoas com histórias de vida completamente diferente da sua. Sem se despir dos nossos preconceitos, não somos capazes de entender o que é diferente de nós.
Se escrevo com frequência, por que só agora percebo isto tudo com clareza? Acredito que o fato de refletir com outras pessoas sobre a mesma realidade me ajudou a confrontar a informação surgida a partir de minhas conclusões e o que, de fato, foi dito pela pessoa entrevistada. Isto porque estamos o tempo todo deduzindo e concluindo a partir de nossas referencias de mundo.
Outra pergunta que faço ao passo em que escrevo é qual a minha intenção em tornar pública uma descoberta tão íntima? Talvez por acreditar que a minha vivência possa ajudar outras pessoas a refletirem sobre atitudes que, por estarem tão impregnadas na nossa forma de estar no mundo, não são fáceis de serem reconhecidas por nós mesmos.
Na ASA, o registro das experiências das famílias agricultoras é uma atividade inserida em um dos programas da Articulação. Assim, muitas pessoas se “aventuram” na produção das tais sistematizações. Às vezes, sem nem se dar conta da importância estratégica desta atividade na proposta de convivência como Semiárido.
Sistematização como ação política – Dentro da ASA, a prática da sistematização das experiências dos agricultores ocupa uma dimensão extremamente política, um caminho para ativar a autoestima de quem foi subjugado enquanto sujeito criador de conhecimento. Há uma visão de mundo hegemônica que enquadra os agricultores como atrasados e rudes frente ao avanço tecnológico que o campo vem passando de forma mais intensa desde os anos70 com a Revolução Verde.
Registrar em texto a oralidade das famílias produz efeitos invisíveis incríveis. Um deles é a reativação de um canal de comunicação que já existiu entre os próprios agricultores e agricultoras. Esse canal está sendo moldado também a partir das visitas de intercâmbio entre grupos de agricultores.
Pessoas que não teriam possibilidade de, por conta própria, visitar localidades em outros estados e até em municípios vizinhos, conhecem realidades que se assemelham as suas, apesar das peculiaridades relativas a cada canto deste país. Assim, testemunhando a transformação alheia, encontram forças e sentido para acreditar na sua própria mudança de vida.
Outro efeito da sistematização é que, ao contar e recontar sua história, falar de sua opção em assumir-se agricultor e agricultora, as famílias ampliam sua consciência sobre o que eles são de fato.
E o fenômeno da ampliação da consciência permite que poderes internos de pessoas e grupos sejam acessados como bem explica Allan Kaplan em seu livro Artistas do Invisível . “Tornar-se completo significa ficar mais consciente de si, mais ciente de quem se é; significa ser transparente para si mesmo, para conseguir se conhecer. Por outro lado, significa se libertar da influência de campos ou forças inconscientes (invisíveis). Assim se conquista maior grau de autoridade em relação à própria vida; deixamos de ser o impotente (e desesperançado) sujeito das circunstâncias... O grau de capacidade que temos para exercer a liberdade depende diretamente do nosso nível de consciência.”
Para arrematar toda esta construção acerca do poder da comunicação na transformação de vidas, cito madre Tereza de Calcutá que um dia disse que a primeira necessidade do ser humano é se comunicar. O Semiárido está testemunhando isso. E está mudando a partir daí.